Por Pedro Vitor Abreu, graduando em
Geologia na UFRJ

E as minhas energias, já esgotadas pelo fim do semestre, vão decantando lentamente…Gradando-se sob um leito de areia grossa, depositado por um fluxo hidrodinâmico de uma semana de provas turbulenta e aparentemente inacabável.
Ainda assim, ao me sentar no ônibus da universidade, é como se uma paleocorrente voltasse a fluir no mesmo sentido do nosso destino, nos levando até os lugares mais longínquos possíveis, dos quais eu jamais imaginaria conhecer se não fosse a instigante e insaciável curiosidade geológica que nos afronta tão constantemente em nossas viagens. E quando eu digo conhecer, engana-se quem pensa que conheceremos apenas paisagens e lugares materiais do presente. Geólogos nunca conhecem uma vez só. Enquanto nossos sentidos estão atentos examinando o local, o afloramento estende-se pelo nosso imaginário, depositando ideias feito um fluxo de turbidez que segue clareando-se com o passar do tempo. Por isto sinto que meus sedimentos mais profundos confundem-se com os sentimentos que causam um frio na barriga ao subir no ônibus da universidade: é a forma com que os grãos sinalizam a formação de pequenas irregularidades no leito rugoso, que logo começarão a rolar vagarosamente e deixarão todas as minhas saudades à barlavento. E tal como Bernoulli, aumenta-se a velocidade do fluxo, mas também diminui-se a pressão sobre nós, estudantes, nos ascendendo e transportando rumo ao desconhecido mundo dos mistérios estratificados que aguardam para serem descobertos, descritos e revelados para a sociedade.
Sairemos carregando um semestre de estudos pesados na mochila, mas com a certeza que voltaremos com um eón de aprendizados na memória. É assim que se começa um estágio de campo, todo fim de semestre.

Eu até admito que nós, geólogos, somos seres particularmente estranhos. Às vezes é possível nos encontrar observando cortes de estrada como quem admira um quadro em um museu. Apesar dos fins acadêmicos pelos quais as observações são feitas, será que o conteúdo destes cortes não são, de fato, obras de arte pintadas pela sensibilidade do tempo? Um tempo que é mutável como um artista que cria e erode as próprias obras, e que ainda comunica-se intimamente conosco como se nos contasse histórias?

Em uma das paradas nos pontos de interesse, anotei em minha caderneta o que um professor nos disse para que eu pudesse litificar para sempre em meu pensamento:
“Os afloramentos são como pinturas.”
Primeiro, devemos observar as feições de longe, enquadrando-as em uma visão completa do que sua morfologia nos diz. Posteriormente é que chegamos mais de perto para entender o que a natureza está querendo nos contar com porções tão sutis de sua grandeza incalculável.
Hoje eu percebo que os afloramentos não precisam ser entendidos apenas como pinturas, mas também como versos. Versos de grandes estrofes que compõem camadas e estratos, metrificando a escrita da mais sublime poesia da Terra.

“O que é que vocês tanto veem nessas pedras? Não são só pedrinhas?”
Tentar responder esta pergunta adequadamente com tudo o que sentimos é como sufocar-se nos quase cinco quilômetros de sedimentos paleozoicos da Bacia do Paraná.
Nós realmente conseguimos enxergar muitas coisas nessas “pedrinhas”, e até gostaria que fosse só isso, pois juro que algumas rochas também possuem a capacidade de falar, principalmente as sedimentares. E como falam. Às vezes falam muito. Falam tanto que eu e meus amigos necessitamos de sacrificar incontáveis noites de sono para traduzir, no “geologuês”, tudo o que elas nos dizem em forma de relatório. O poeta Olavo Bilac compartilha um sentimento parecido com relação às estrelas em seu poema “Via-Láctea”:
Via-Láctea XIII
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto…
E conversamos toda a noite, enquanto A via-láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas”.
As nossas rochas são como as estrelas para Olavo Bilac: é necessário amar para que se possa entendê-las. É amando que seguimos admirados, com um croqui de um “sorriso geológico” desenhado no rosto, martelando com insistência a resposta sobre a beleza que se esconde por debaixo das nossas botas quase sempre enlameadas.
Eu penso que o geólogo não apenas vê algo que muitos não possuem, ainda, a facilidade de enxergar. O geólogo vê, descreve e conversa com as rochas e sedimentos. E as histórias que temos a gratidão de receber não são ordinárias, não. São histórias que afloram eventos grandiosos e inimagináveis à sensibilidade temporal humana, pois tais acontecimentos escondem-se desde à minúscula fração silte, até o maior dos matacões. E cabe a nós encaixar estas histórias em um imenso quebra-cabeça da história evolutiva da Terra, desvendando-as através de pistas que se dobram, falham e fracionam o tempo em instantes infinitos, como verdadeiros detetives.
Eu consigo compreender a perplexidade tão comum quando fomentamos o conhecimento geológico. É comum desdenharem das informações, inclusive. Eu mesmo seria cético para acreditar em pessoas carregando lupas e martelos, coletando pedrinhas no meio do mato se eu não fosse (felizmente) um destes.

E depois que começou, não tem volta.
Aqui, no Paraná, temos um claro exemplo de que até um “barranco” pode esconder pistas sobre um evento geológico extraordinário.
Estávamos nós, estudantes, sob o Sol do meio dia, pingando mais suor do que clastos pingados em um varvito, quando descrevemos um afloramento do Grupo Itararé que demonstrou-se pertencer a um paleoambiente glacial, aflorando camadas arqueadas na presença de sedimentos bem estriados e facetados devido à ação de antigas geleiras. Experiências como essa vão lapidando lentamente a sensibilidade do raciocínio geológico, e quando nos damos conta, já estamos tentando entender cada morfologia de cada paisagem, ao invés de contemplar a simplicidade contida no momento.

Geólogos desenvolvem gostos duvidáveis, inclusive. Além de lamber rochas para verificar o teor de argila (algumas vezes, admito), passamos a admirar simples cortes de estrada também. Mas melhor do que cortes de estrada, para mim, na verdade, são os cortes de ferrovia. Penso isto pois além do encanto natural da beleza que as ferrovias promovem, um trem passando por nós soa quase como uma metáfora: um trem que, seguindo a linha da ferrovia, atravessa a presença de geólogos curiosos, é como um pensamento que acaba de encontrar a sua linha de raciocínio. Linha de raciocínio esta que poderia ser facilmente perdida, afinal, como explicar a presença de um fóssil de um antigo ser marinho, já extinto, de idade Devoniana, achado em um folhelho tão distante do mar atual? São milhões de anos de história em amostras de mão para serem descritas e interpretadas, mas não reclamamos, nos sentimos privilegiados.
Fósseis de Trilobita (esquerda) e Braquiópode (direita) em Folhelhos da Formação Ponta Grossa, idade Devoniana.

Não conheço outra graduação que seja capaz de fornecer ao estudante duas aventuras ao mesmo tempo: a do conhecimento e a das experiências. Longas viagens de ônibus e trabalhos de “escritório” para confecção de relatórios técnicos podem se tornar cansativos e repetitivos, mas venho confirmando no meu pensamento que fiz a escolha correta e que sou muito grato por isso.
Sempre volto de campo com a mochila mais pesada do que eu levei,
carregando pedras e histórias
ou histórias de pedras.

Link da publicação original: https://medium.com/@pvabreu7_78491/est%C3%A1gio-de-campo-ii-b5589a3db28b
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